Fotografias: Janine Moraes, Júlia Braga, Josângela Jesus e Karen Gronich
O que sustenta a proposta de um Caminho do Sertão: De Sagarana ao Grande Sertão: Veredas é a percepção de que as estórias colocam a história em perspectivas, podendo-se, portanto, questioná-la, negá-la, subvertê-la, ultrapassá-la, encantá-la e/ou recontá-la; de que a imaginação e vivências outras podem reinventar mundos. Toda vez em que se conta um conto ou se narra uma estória, amplia-se a possibilidade de escuta do outro, de compreensão das diferenças e da legitimação delas, bem como se expande a possibilidade de relativização dos nossos sensos, reverências, certezas e convicções. Escutar o outro é abertura incondicional para o verdadeiro diálogo. A escuta é a hospitalidade preparando aquele que ouve o outro, caminhante pela vida do outro, para o diálogo e para as implicações filosóficas e existenciais do sair de si e peregrinar por percepções terceiras. A escuta é alteridade, reconhecida e legitimada.
O Caminho do Sertão: De Sagarana ao Grande Sertão Veredas é uma trilha sócio-eco-literária que oferece uma imersão no universo de João Guimarães Rosa, na literatura, na geografia, nos saberes e fazeres dos habitantes dos vales dos rios Urucuia e Carinhanha, no noroeste e norte de Minas Gerais. Propõe-se uma jornada de 186 km, a ser percorrida a pé, em 7 (sete) dias, saindo do distrito de Sagarana, no município de Arinos-MG, para chegar à cidade de Chapada Gaúcha, onde se situa parte substantiva do Parque Nacional Grande Sertão: Veredas. Em Sagarana, primeiro assentamento de reforma agrária da região, implantado na década de 1970, está situado o Parque Estadual de Sagarana, gerenciado pelo IEF – Instituto Estadual de Florestas – onde ocorreu, por sete edições, o Festival “Sagarana: Feito Rosa para o Sertão” e três edições do Festival de Cinema – “Cine Baru”. Não distante dali, está Chapada Gaúcha, cidade sede do Parque Nacional do Grande Sertão Veredas. Em Chapada, todo mês de julho, acontece o “Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas”, o grande evento de celebração da cultura tradicional da região.
Assim, esta jornada literária “de Sagarana ao Grande Sertão: Veredas” parte da primeira obra de João Guimarães Rosa: Sagarana, livro de contos/novelas publicado em 1946 e alcança sua obra de maior fôlego – Grande Sertão:Veredas, o único romance escrito pelo autor, publicado em 1956. Na jornada, o caminhante percorrerá parte do caminho realizado por Riobaldo e seu bando de jagunços rumo ao Liso do Suçuarão – suposto deserto do Grande Sertão: Veredas. A travessia passa pelo Urucuia – o rio de amor –, pelo Ribeirão de Areia e pelo Vão dos Buracos. Uma jornada em terras marcadas por movimentos, deslocamentos e giros, por presenças em travessias, a revelar que o deserto é não-deserto, terra de um povo geraizeiro, terra de cultura e de cerrado, onde natureza e humanidade estão imbricadas.
É uma jornada socioambiental pela diversidade do cerrado mineiro, em que se fundem veredas, lagoas, rios, comunidades tradicionais, povoados, assentamentos de reforma agrária, grandes fazendas do agronegócio e unidades de conservação (Parque Estadual Sagarana, Reserva de Desenvolvimento Sustentável Veredas do Acari, Parque Estadual Serra das Araras e Parque Nacional Grande Sertão: Veredas). É a oportunidade para os caminhantes despertarem o olhar para a crise hídrica e o processo de desertificação que ameaçam a região e para refletir acerca das mudanças necessárias para manter os cursos d’água e ativos ambientais – Vivos!
Assim, propõe-se uma jornada mais que literária, mais que social e cultural, mais que ecológica. A jornada é existencial, à medida que a travessia do sertão proporciona o encontro com as estórias de Rosa, com as estórias e histórias do povo sertanejo dos Gerais e, ainda, com as trajetórias e visões pessoais dos caminhantes, levando-os a refletir sobre suas próprias questões e questões socioambientais. Propõe-se um grande diálogo a apontar para o auto encontro de toda verdadeira caminhada. Nos dizeres de Rosa/Riobaldo, “o sertão está em toda parte”, “é do tamanho do mundo”, “não está em lugar nenhum” e “está dentro da gente”, o que revela o paradoxo humano que se reflete na Terra em Transe, em Trânsito, em estado de Mutação, em meio à Travessia…
Gaia, antropoceno, singularidade, redemoinho…
Entusiasmados, flertando com o sertão interior como a alma do Brasil profundo, crê-se que, com os horizontes ampliados pela jornada, os caminhantes estarão aptos à percepção do Sertão, do Brasil e do mundo numa encruzilhada histórica e civilizacional. Nessa encruzilhada, em que as possibilidades se encontram abertas, a via alternativa não está dada e, para que ela seja delineada, é necessária a construção de uma nova narrativa – planetária e cidadã, auto poética e dialógica, a partir da qual se possa encantar e mobilizar corações, corpos e mentes para o caminho que se faz ao caminhar.
Assim, o convite para que as pessoas integrem, venham e sigam pelo Caminho do Ser Tão, ao encontro dos povos do Grande Sertão Veredas, “pelo Cerrado e suas Culturas, de pé!” é mais que um convite apenas; é um chamamento, uma evocação para a descoberta do ser a partir de uma trilha que lança o humano para dentro de si e para fora de si simultaneamente, num trânsito e numa busca constante da unidade de contrários entre o “Sertão de Fora” e o “Sertão de Dentro”.
Tal caminho é físico, geográfico, traçado num mapa; mas suas ambíguas “linhas de fuga” fazem dele também um caminho da ordem do discurso, crítico-filosófico, situacional, metafísico e existencial, como expõem muitos caminhantes que já fizeram a travessia.
As dimensões cognitivas transdisciplinares, exercitadas pelos caminhantes no Caminho, levam a um melhor conhecimento do sertão mineiro, suas peculiaridades, ameaças e possibilidades. Os afetos relacionados à apreensão das veredazinhas, do real do sertão e do sertão do real, tendem a tocar os caminhantes, pedindo-lhes e permitindo a eles o amor e a proteção. Pois só se pode proteger e cuidar daquilo que se ama. Só se pode amar aquilo que se conhece. Por isso o sertão enuncia: CONHESERTÃO: VIVEREDAS!
Mapa d’O caminho do Sertão – De Sagarana ao Grande Sertão Veredas.
CONTEXTUALIZAÇÃO:
Os vales do Rio Urucuia e do Rio Carinhanha estão situados no noroeste e norte de Minas Gerais, respectivamente. Esses espaços são marcados por grande contradição social: comporta áreas de fronteira agrícola do bioma cerrado, por significativa presença de assentamentos de reforma agrária, posseiros, agricultores familiares tradicionais, comunidades quilombolas, unidades de conservação e pela agropecuária empresarial. Nas últimas décadas, com a expansão alucinada do agronegócio e do hidronegócio, o espaço vem sendo atingido por uma grave crise hídrica, com secamento de veredas, assoreamento de cursos d’água e forte ameaça de desertificação.
Ainda assim, a maioria da população resiste e segue a ocupar as zonas rurais – as roças, a partir das quais se estabelece ali íntima relação com a natureza e se conduz a agropecuária voltada ao autoconsumo, com reduzidos excedentes produtivos comercializáveis. A região é uma das mais preservadas do Cerrado mineiro. Isso se dá pela forte presença de povos e comunidades tradicionais, reconhecidos como fator que bloqueia o desmatamento por manter, entre outras coisas, práticas agropecuárias tradicionais não agressivas e laços culturais de vizinhança e de solidariedade sertanejas.
No território que ambienta o Caminho, facilmente se encontram os tipos sertanejos que povoam as estórias de João Guimarães Rosa, bem como a fauna e a flora, típicas do cerrado brasileiro. Do ponto de vista socioeconômico, entretanto, há quem destaque, entre outros, fatores como os baixos IDHs (Índices de Desenvolvimento Humano) associados a diversos municípios, a elevada concentração fundiária, o avanço da fronteira agrícola sobre áreas de uso comum, a deficiência na oferta de serviços e equipamentos públicos.
Por todas estas questões, na virada do século, um grupo de lideranças regionais dos setores público, produtivo e do terceiro setor, recorrendo a parceiros diversos, entre eles o Ministério da Integração, o Sebrae e a Fundação Banco do Brasil, desencadeou um esforço de cooperação intermunicipal, de organização social e de diversificação produtiva, ancorados no Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Vale do Urucuia (PDTIS-Urucuia). Entre as cadeias produtivas alavancadas nesse processo, está a do Turismo – com tônica no Turismo Ecocultural de Base Comunitária – que promove a autonomia produtiva, a noção de pertencimento ao território e a autoestima da população sertaneja.
O “CAMINHO DO SERTÃO – De Sagarana ao Grande Sertão: Veredas” é um dos principais frutos oriundos de todo esse esforço de desenvolvimento territorial e pretende ser um forte atrativo para despertar a atenção e o interesse de públicos diversos, institucionais e não-institucionais, para o valor da diversidade eco-cultural dos Vales dos Rios Urucuia e Carinhanha. As seis edições, realizadas de 2014 a 2019, agregaram mais de 400 caminhantes de todas as regiões do país. Devido à grande demanda, a seleção dos caminhantes, em cada edição anual, se dá por meio de edital. Procura-se, na seleção, garantir a representação da diversidade regional brasileira e o caráter eclético e mestiço da nossa gente.
A realização do “Caminho” envolve um trabalho coletivo de várias entidades comprometidas com o desenvolvimento sustentável e inclusivo no território. As principais são: o Instituto Rosáceas, a ADSVRU – Agência de Desenvolvimento Integrado e Sustentável do Vale do Rio Urucuia; a Copabase – Cooperativa de Agricultores Familiares em Bases Solidárias; o Cresertão – Centro de Referência em Tecnologias Sociais do Sertão; a Central Veredas de Produção e Comercialização do Artesanato, o movimento nativista baiangoneiro/UNIFAM, a Fundação Pró-Natureza – FUNATURA e o Instituto Rosa e Sertão. Há que registrar também a colaboração das prefeituras de Arinos (MG) e Chapada Gaúcha (MG), do IEF-MG, do ICM-Bio, do Sebrae-MG, do Corpo de Bombeiros de MG e do IFNMG- Campus Arinos.
Fotografias: Janine Moraes, Júlia Braga, Josângela Jesus e Karen Gronich
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