Na vila de Sagarana, vira-lata juntou-se ao grupo de caminhantes e seguiu viagem.
A vila de Sagarana fica a cerca de 80 quilômetros da cidade de Arinos, na região noroeste de Minas Gerais. Quem chega, via estradão de terra, lê na placa a mensagem de boas vindas. Ao longo da única rua asfaltada, há campinho de terra batida, três minimercados, bares e casas com grandes quintais. A vila é ponto de partida das cerca de 80 pessoas participantes do Caminho do Sertão, proposta de caminhada cujo roteiro entrelaça saberes literários, culturais e sociais. Seis dias depois, os caminhantes – como são chamados os que se lançam à aventura – chegam à cidade de Chapada Gaúcha. O trajeto, de aproximadamente 180 km, é feito a pé. Ou, como viu-se na última edição, em julho de 2019, sobre quatro patas. Foi ali, na vila de Sagarana, que um vira-lata magro, de cor caramelo, encontrou seu grupo.
A jornada começa antes do sol raiar. Com o céu clareando no horizonte, os participantes dão os primeiros passos da viagem, rumo à vila de Morrinhos. O fim do primeiro dia de caminhada – são mais de 30 quilômetros – é marcado pela travessia do rio Urucuia, apelidado pelo escritor João Guimarães Rosa de “Rio do Amor”, na obra Grande Sertão: Veredas. Conforme chegam, os caminhantes se organizam em pequenos grupos sobre a balsa metálica puxada por corda presa de um lado a outro das águas. Já era noite quando, quem esperava nas margens da chegada, viu o vira-lata atravessar a nado, rumo ao ponto onde os caminhantes ficariam acampados.
“Oh, o cachorro!”, alguém gritou, surpreso. E o bicho chacoalhava dos pelos as águas do Rio do Amor. Ficou certo: não haveria volta. Quem atravessou o rio, é porque vai seguir caminho. Logo o cachorro encontrou seu canto de descanso no primeiro pouso da viagem. Alimentou-se, andou ao redor da fogueira, aconchegou-se e dormiu para amanhecer junto do grupo.
Quando, antes das 6 da manhã, os caminhantes espantavam o sono com xícaras de café, o bicho já andava desperto. No segundo dia de andança, após trajeto de 6 km, enquanto o grupo esperava o ônibus escolar que os levaria à próxima parada, alguns debatiam o nome. Uns sugeriam Sertão, outros preferiam Saga, em homenagem ao ponto de partida e possível morada do vira-lata. Nome indefinido, havia uma certeza: o cachorro também entraria no ônibus.
Contrariado, quis sair. Angustiado, andou de um lado a outro do corredor. Do lado de fora, as rodas do circular levantavam poeira alta. Nos bancos, o sono chegava aos olhos de quem acordou antes do sol raiar. Quando o velho coletivo escolar parou e um rapaz saltou para abrir a porteira, houve despertar e susto: “cadê o cachorro? Será que desceu?”. Nada. Estava deitado aos pés de quem sentava no fundo do ônibus. Deu seu jeito de diminuir o incômodo no chacoalhar do veículo.
De um chamado aqui, outro lá, foi-se definindo o vocativo. Estabeleceu-se o consenso: o nome do cão ficava sendo Sertão. Com o passar da caminhada, Sertão foi aumentando sua presença no grupo. Em cada parada para lanche, vinha a pergunta: “cadê o Sertão?”. Começaram, os caminhantes, a separar um pouco da própria comida para alimentar o companheiro, sempre arfante ao fim de cada trecho. As manchas escurecidas sobre o pelo caramelo, alguém notou, eram sarna.
A primeira tentativa de trazer ao bicho algum alívio veio pelas mãos da professora Giselle Radics Koszo. Agachada na beira da estrada, ela amassava folhas de eucalipto e esfregava sobre o pelo do animal: “É pra aliviar, limpar”.
“Tirei uns carrapatos dele”, alguém contou.
“Cuidado, ele tá muito doente, não pode ficar colocando a mão”, outro alertou.
Uma planta do cerrado, a pita, trouxe o remédio para as sarnas. “A gente pegou a pita no caminho, masserou num copinho, fiz um extratozinho e demos um banho nele”, contou o agrônomo Marcos Luiz da Cunha. Para a tarefa, ele recebeu ajuda da Giselle. Horas depois, os ferimentos aparentavam melhora.
Conforme passavam quilômetros e os pés cansavam, Sertão também dava sinais de exaustão. As pernas tremiam. Ele chorava baixinho. Mas, quando era hora de caminhar, seguia na dianteira, governado pelo espírito de quem nasceu para as matilhas. Atravessou rios, dormiu debaixo de sombra, alimentou-se de farofa de carne seca e subiu, sob a luz das estrelas, o Vão dos Buracos, último trecho da caminhada.
No ponto de chegada, na cidade de Chapada Gaúcha, durante uma roda de conversa em um galpão improvisado como camping, o cachorro largou o corpo num canto. Parecia desmaiado. Juntaram-se ao redor cinco pessoas, tocaram, puxaram a pele para perceber a hidratação: estava bem, mas precisava de força, um soro ou vitamina.
Buscaram os medicamentos mas a aplicação fez-se desnecessária. Sertão levantou-se, já menos adoentado, e voltou a andar entre os caminhantes, agora parados entre os abraços de fim de jornada. E, mais uma vez, o cachorro virou assunto para debate: volta para Sagarana ou fica na Chapada Gaúcha?
“Ele vai pra Sagarana. Eu acho que é mais justo. Porque aqui, ele não vai ter nenhuma ligação”, ponderou Marcos. Foi essa a decisão do grupo. Outra vez, Sertão rodaria quilômetros num coletivo escolar, agora de volta para onde, suspeitavam, seria sua morada.
“Seria matar a alma dele colocar num quintal, com coleira e ração. Ele é do mundo, ele tem que voltar pra lá, eu acho mesmo que ele vai contar essas histórias lá pros outros cachorros”, dizia Giselle.
De volta à vila, o cachorro-caminhante fez a última refeição ao lado dos companheiros de saga.
“Cadê o cachorro?”, perguntou alguém, olhando ao redor.
“Tem um monte ali, ó”, apontou um morador da vila.
“Mas eu tô falando é do nosso”.
Sertão encontrou uma sombra no gramado, comeu carne de panela, cochilou. O rumor em Sagarana é que Sertão era mesmo cachorro de rua, sem dono. “Fiquei sabendo que ele tava ali no Correio, uma sobrinha minha falou. É alguém que solta ai na rua”, informou a costureira Helena Gonçalves.
Aos poucos, os grupos se organizavam em vans e carros, rumo às cidades de origem, tantas neste Brasil. Quando sobravam, no quintal do almoço derradeiro, somente os moradores dali e algumas pessoas da organização da caminhada, Dercilio Gomes, dono da casa, chamou pra ver.
Num quartinho no fundo da varanda, aninhado ao lado da prateleira, o Sertão dormia, encolhido e adoentado, enquanto cada companheiro de jornada tomava rumo da própria casa.